Desde o curso 2007-2008, o disciplina de Ética da School of Architecture (UIC Barcelona, Espanha) analisa a obra cinematográfica de Alfred Hitchcock, soba ênfase do projeto de arquitetura. Nesta análise do historiador e teórico de arte Alfons Puigarnau e o arquiteto Ignacio Infiesta, o espaço é entendido como uma caixa cenográfica e desenvolve um papel vital, onde se analisa a estratégia visual em relação ao roteiro e a trilha sonora, com a intenção de criar uma deliberada atmosfera de suspense/thriller.
Ao longo deste curso, direcionado a estudantes de arquitetura do terceiro ano, estuda-se o olhar o do diretor de cinema como se fosse um elemento compositivo a disposição do arquiteto que projeta. Parte-se de uma analogia entre a lente da câmera que utiliza a luz e lápis do arquiteto que contorna as formas. De fato. Hitchcock enfatiza sempre o visual sobre o diálogo [1].
Conheça o trabalho dos alunos da School of Architecture UIC a seguir.
Tradicionalmente as disciplinas de arquitetura foram divididas entre as que abarcam o campo prático da profissão e as que se inscrevem dentro da teoria. Há anos, a School of Architecture da UIC está realizando um esforço para implementar uma parte prática em todas as matérias da Área de Pensamento, com uma pedagogia capaz de ensinar os estudantes a imediata utilidade da teoria para o projeto próprio do arquiteto.
Esta disciplina foi estruturada em duas seções complementares. Por um lado, o historiador e teórico de arte Alfons Puigarnau dita conferências que desmascaram distintas estratégias de projeto, através da análise formal-compositiva dos elementos formulados por Hitchcock. Por outro, e ao mesmo tempo, o arquiteto Ignacio Infiesta pretende criar uma parte prática a fim de propor aos estudantes do grupo de expressão gráfica que possam funcionar como materializações cenográficas da ideia de suspense no espaço arquitetônico.
Arquitetura e suspense: um plus de emoção para o projeto
Deixar o espaço em suspense. Talvez seja este um dos aspectos mais destacáveis que o cinema pode contribuir com a arquitetura no momento de projetar/imaginar espaços intensamente emocionais. Hitchcock pensava o espaço arquitetônico como um modelo no qual representaria o conteúdo psicológico de um file a e coreografia dos seus movimentos dramáticos [2]. Neste sentido, os filmes analisados vão se desprendendo a fim de obter conceitos arquitetônicos que ajudem os alunos a desenvolver estratégias de suspense nos seus projetos.
O suspense é um poderoso meio para prender a atenção do espectador, seja "técnico"- deliberado hiato entre uma ação e um resultado - ou,"psicológico", onde prevalece o processo mental do espectador sobre a literalidade da ação filmada [3]. Por isso, todo o bom projeto de arquitetura, com os filmes de Hitchcock, deve desenvolver uma só ideia que acabe expressando-se no momento em que a ação alcança seu ponto dramático culminante [3]. Nesta disciplina este poder de fazer vibrar o expectador é algo comum no cinema e na arquitetura.
Como afirma Hitchcock na entrevista realizada por François Truffaut: não se deve confundir o suspense com surpresa. As emoções são ingredientes indispensáveis para que exista o suspense. Para que haja suspense é necessário conhecer a situação espacial, sabendo que o ponto final é a surpresa. Para que haja suspense o espaço deve ser honesto, deve existir um elemento que coloque em tensão toda a ação, que torne inesperada a conclusão da experiência sobre este espaço. O suspense proporciona a atmosfera perfeita para que exista a surpresa.
1. PSICOSE: Muxarabi como elemento de suspense
Em Psicose (1960), manifesta-se uma das formas mais recorrentes para gerar uma atmosfera de suspense na obra de Hitchcock: o voyeurismo ou "ver sem ser visto". Na nossa retina está gravada a imagem de Norman Bates observando Marion Crane do quarto contíguo ao seu escritório. Dominar através do olhar sem que o outro sujeito esteja consciente, a dupla personalidade de Norman, assim com sua fixação por voyeurismo nos faz pensar que o potencial do muxarabi como elemento arquitetônico representa esta ambiguidade entre um estado mental e outro, entre a união da pele como ossos (taxiodermia). O conceito de voyeurismo também se expressa arquitetonicamente no filme pelo predomínio simbólico que exerce a casa de estilo vitoriano sobre a deliberada funcionalidade do edifício do Motel Bates.
O muxarabi é um lugar intermediário. Espaço de suspense se situa sempre na fronteira entre dois meios: interior-exterior. Como os animais dissecados por Norman Bates, é uma pele viva. Também é importante enfatizar a trilha sonora de Bernard Hermann que, utilizando instrumentos de corda, nos leva a pensar que somente com um registro sonoro podemos ser capazes de criar suspense.
2. FESTIM DIABÓLICO: O projeto como crime
O crime como a forma de arte mais pura. Assim é como Brandon e Philip planejam o assassinato de David. O planejamento e o preparo da ação nos podem ajudar a imaginar espaço arquitetônicos com esta metodologia. O crime tem a capacidade de acelerar o espaço ao buscar dramaticamente um desfecho.
Festim Diabólico (1948) é o primeiro filme que Alfred Hitchcock rodava em Technicolor, cuja emulsão cromática acentuava a princípio os tons pastéis e a atenuava as cores frias, na mesma linha dos refinamentos buscados pelo diretor. O tempo deste filme não é um tempo narrativo, mas sim real. A estratégia central é o desenvolvimento da ação como se fosse rodado em uma só tomada, sem montagem. O próprio filme é considerado como um projeto de arquitetura, é possível entendê-lo em um só olhar, em uma só tomada contínua.
A unidade entre espaço-tempo é absoluta. Tudo o que acontece no espaço corresponde ao tempo, como podemos ver na mudança de luz do diorama que mostra a cidade de Nova Iorque. O Festim Diabólico possui a estrutura narrativa de uma tragédia grega: anticlímax-de início até a ação-clímax. A famosa unidade da ação, postulada na Poética de Aristóteles.
3. UM CORPO DE CAI: O projeto como transição
A fita de Moebius é um fio-condutor em Um Corpo que Cai (1958). O símbolo da espiral que aparece em diferentes sequências da trama: o ramo de flores, os anéis das sequoias, o travelling de 360° no beijo da habitação ou o primeiro plano do coque de Kim Novak ou Carlota Valdés. A fita de Moebius entendida como eterno retorno, mas sobretudo como capacidade de transitar pela mesma superfície sem mudar de plano. Assim é como se desloca o personagem que interpreta Kim Novak, transitando entre as personagens cinematográficas de Madeleine e Judy Barton.
Em uma das cenas mais emotivas do filme também podemos visualizar de forma efetiva o conceito de transição. O momento em que Scottie persegue Madeleine subindo pelo campanário da missão São João, Hitchcook brinca com o zoom da câmara, que não é outra coisa que uma metáfora entre o mundo dos vivos e dos mortos.
Na arquitetura as formas de transição foram a consequência de objetos fixados previamente, e da necessidade prática que impõe a construção material de um edifício. Por exemplo, a passagem da forma quadrada da planta de cruz em uma igreja, até a forma poligonal ou circular da cobertura da cúpula. O interesse em um espaço em transição está em como se transita de uma forma à outra.
4. JANELA INDISCRETA: O projeto como olhar
Em Janela Indiscreta (1954), é produzida uma tensão entre quem vê e o que está sendo visto. Tudo isto através da seção do pátio interior da quadra. Hitchcock, ao conceder uma exagerada atenção aos objetos ópticos, nos introduz no tema do olhar. A arquitetura como somente olhar pode alcançar sua maior expressão em um jogo de seções. É justamente na parte onde se descobre o que está acontecendo com em um projeto, assim como se descobre o assassinato no filme.
Alfred Hitchcock foi um grande editar do ponto de vista dominado pela subjetividade. Esta força de predispor o olhar nos futuros espaços, manipulando os usuários que vemos sem ser vistos, também a possui o arquiteto quando se vê submergido no processo de esboço projetual ou anteprojeto. Em Janela Indiscreta, encontramos, além disso, um olhar tipicamente metropolitano. Somente em um espaço metropolitano o crime pode ser considerado uma obra de arte. Na vida ordinária da cidade qualquer coisa é possível. A seção de um ambiente metropolitano também explica a contradição entre a impossibilidade de estar sozinho e a forçosa solidão do anonimato.
5. PACTO SINISTRO: O projeto como montagem
Costuma-se dizer que este é um dos poucos filmes do mestre de suspense que pertence ao gênero do "cinema negro " nascido em torno da Grande Crise de 1929. O cinema preto e branco trabalho o contraste entre luzes e sombras, sobretudo através da luz zenital. Pacto Sinistro (1950) está baseado em um livro de Patrícia Highsmith que leva o mesmo nome. Diferentemente de Festim Diabólico, este filme estrutura-se através de muitos fragmentos. O ato de montagem, unindo diferentes tomadas sem renunciar a uma composição total foi muito trabalhoso.
É possível criar um suspense realizando um trabalho de montagem? Hitchcock nos mostra no primeiro filme, onde intensifica e dramatiza o que poderia ser uma ação cotidiana. A câmera a nível do solo nos mostra o movimento antitético de dois homens distintos que se dirigem ao trem. Somente quando os pés se chocam acidentalmente, a câmera inicia uma panorâmica vertical e podemos ver os rostos dos personagens. A arquitetura de Enric Miralles é um exemplo de trabalho feito com base em fragmentos de anotações onde aparecem linhas que tecem e unem a obra. O fragmento sempre dá a possibilidade de explorar a tonalidade, seja de luz ou do próprio material. Entende-se o projeto como um processo, inclusive um processo aberto.
6. PACTO SINISTRO (II): O projeto como campo magnético
Em Pacto Sinistro, existe outro tema do qual não queríamos prescindir: o magnetismo da arquitetura e sua relação direta com a noção de suspense. O filme é rodado em Washington, cidade monumental de grandes eixos e praças. É revelador observar como no filme o enfrentamento entre dos homens (Guy e Bruni), está sempre mediatizado pela arquitetura. Ali o monumento possui esta carga cenográfica e força magnética que coloca em suspense toda a cena. A arquitetura funciona neste caso, como uma analogia de dominação que exerce Bruno sobre Guy.
Percebe-se também, em todos os filmes de Hitchcock, a relação misteriosa entre centro e periferia. Que não é outra coisa senão a relação entre a pequena e a grande escala, onde os pequenos objetos obtém outro tipo de conotação ao estarem submersos em um contexto metropolitano.
7. A SOMBRA DE UMA DÚVIDA: O projeto como dúvida
A sombra de uma dúvida (1943) é um filme feito com uma linguagem cinematográfica mais primitiva. Define-se como um thriller psicológico. Um homem fora da lei decide ir a Santa Rosa (periferia) para instalar-se em um ambiente rural, ingênuo e pouco sofisticado. O tio Charlie é um foragido que lança a dúvida da sua culpabilidade no seu entorno familiar (está de visita), quanto ao assassinato de uma "viúva alegre". Mas não é o único suspeito, fato que acrescenta ainda mais dúvidas. Este conceito de dúvida se expressa fisicamente no filme através da escada, um dos elementos mais significativos do filme. É possível sair por qualquer escada, de forma de qualquer suspeito pode ser culpado.
Em A sombra de uma dúvida, a escada principal serve para acentuar a violência do espaço interior da casa. Planeja-se a problemática do dilema: aquilo que nos faz duvidar entre uma opção e outra. O dilema no projeto arquitetônico cria sempre um estado de incerteza, que pode ser considerado como uma estratégia de projeto. Seria lógico pensar assim, já que na arquitetura moderna, ao liberar-se da parede auto-portante, instalou-se uma contínua dúvida.
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Notas
[1]Françoise Truffaut, El cine según Hitchcock, 1974, p.20; p.59
[2]Steven Jacobs, The Wrong House: The Architecture of Alfred Hitchcock, 2013, p.10-15
[3]Françoise Truffaut, El cine según Hitchcock, 1974, p.66
Referências
- Steven Jacobs, The Wrong House: The Architecture of Alfred Hitchcock, Rotterdam 2013
- Hitchcock by François Truffaut, The Definite Study of Alfred Hitchcock by François Truffaut,(Revised Edition), New York, Simon and Schuster Inc., 1985 (1983)
- Th. De Quincey, On Murder as a Fine Art, London, Philip Alan & Co., Quality Court, 1925 (1827)
- S. Gottlieb (ed.), Hitchcock on Hitchcock. Selected Writings and Interviews, London, Faber and Faber Limited, 1995
- E. Trías, Vértigo y pasión, Vértigo y pasión: un ensayo sobre la película "Vértigo" de Alfred Hitchcock, Barcelona, Taurus, 1998
Alfons Puigarnau graduou-se em História da Arte na Universidade de Barcelona com honra e obteve seu doutorado em 1999. Desde 2001, é professor de Estética na School of Architecture de laUIC Barcelona dirigindo a área e Pensamento.
Ignacio Infiesta é arquiteto formado pela School of Architecture de laUIC Barcelona desde 2012, e professor associado da mesma escola. Colaborou com a artista audiovisual Eugenia Balcells, colabora nas últimas cenografias de Carlus Padrissa e exerce a profissão de arquiteto no SSCV Arquitectos.